POR QUE FAMÍLIAS POBRES TAMBÉM DESPERDIÇAM COMIDA NO BRASIL?
Sobras em boas condições muitas vezes são vistas com
preconceito, aponta pesquisador; cultura da fartura e hospitalidade contribuem
para desperdício.
“Sua comida não é lixo." O alerta é do Waste and
Resources Action Programme, mais conhecido como Wrap, criado na Grã-Bretanha há
17 anos para combater o desperdício de alimentos.
Mas vale também para o Brasil, onde uma carga equivalente a
625 mil caminhões cheios de verduras, frutas, e legumes bons para o consumo vai
parar no lixo a cada ano. Este é o tamanho do desperdício de comida no país: 41
mil toneladas anuais.
Toda essa comida jogada fora seria suficiente para acabar
com a insegurança alimentar no Brasil, de acordo com o Centre of Excellence
Against Hunger (Centro de Excelência contra a Fome, em inglês) do Programa
Mundial de Alimentos das Nações Unidas.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad) de 2013, o Brasil somava naquele ano 52 milhões de pessoas sem acesso
diário à comida de qualidade e em quantidade satisfatória. Dos 65,3 milhões de
domicílios registrados, 22,6% estavam em quadro de insegurança alimentar.
"É preciso combater o desperdício em todas as etapas da
produção, comercialização e consumo", disse à BBC Daniel Balaban, diretor
do centro. "Reduzir o desperdício na fase de consumo está ao alcance de
todos."
Dinheiro no lixo
Uma estimativa do Instituto Akatu, que trabalha há 16 anos
com ações de incentivo ao consumo consciente, indica que o brasileiro
desperdiça, em média, 205 gramas de alimento por dia e que cada família - de
três integrantes, de acordo com o padrão do IBGE - joga no lixo mensalmente R$
171 em alimentos. Na Grã-Bretanha, descartar comida em condições de consumo
representa um prejuízo mensal equivalente a 60 libras (R$ 231) para uma família
média.
"Um consumidor, são vários: ele, a família e os amigos.
Todos podem mobilizar outras pessoas. O consumo tem impacto e o consumidor,
individualmente, causa impacto econômico", afirma Hélio Mattar,
diretor-presidente do Instituto Akatu.
O analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) Gustavo Porpino, que fez estudos sobre o comportamento do consumidor
nos EUA e no Brasil, afirma que não são apenas os mais ricos que esbanjam
alimentos no Brasil.
O desperdício, segundo ele, impressiona nas famílias de
classe média baixa, que representam a maior fatia da população brasileira.
Segundo o analista da Embrapa, contribuem para o desperdício
dois hábitos brasileiros - a fartura e a hospitalidade.
"Sempre pode chegar alguém" e "é melhor
sobrar do que faltar" foram as frases que Porpino mais ouviu de donas de
casa durante sua pesquisa, realizada em 2015.
As sobras são vistas com preconceito, e isso alimenta o
desperdício. "Muitas mulheres me disseram que a família não gosta de
'comida dormida' e que o arroz tem que ser sempre fresquinho", conta.
Outra constatação feita pelo pesquisador diz respeito ao
papel do sentimento de culpa na cadeia do desperdício de comida. Essa culpa explicaria o fato de as sobras serem dadas também
para cães e gatos, que podem ser dos vizinhos ou de rua.
Outras vezes, o que sobra é guardado em recipientes
impróprios, fica esquecido por dias na geladeira e acaba indo para o lixo.
Qual o seu perfil?
Porpino estabeleceu cinco perfis de mães responsáveis pela
alimentação de suas famílias, após comparar o comportamento de consumidores de
baixa renda no Brasil e nos EUA:
Mães carinhosas
Elas adoram prover a família e alimentá-la como forma de
demonstrar afeto e cuidado.
Acabam se excedendo na compra de guloseimas e das chamadas
comfort foods (com valor sentimental ou nostálgico e quase sempre com alto
nível calórico).
Sua família belisca muito entre as refeições e isso acaba
por aumentar a quantidade de alimentos que sobram do jantar, de acordo com
Porpino.
"Que tal um lanchinho?", é a pergunta que melhor
define essas mães.
Cozinheiras abundantes.
Essas mães costumam preparar grandes porções de alimentos.
Essas mães costumam preparar grandes porções de alimentos.
As cozinheiras abundantes valorizam a fartura à mesa, por
status ou hospitalidade.
A mesa farta seria uma maneira de demonstrar que problemas
econômicos não abalam a família ou um meio de dar boas vindas a quem chega de
surpresa.
Sua frase típica: "É melhor sobrar comida do que
faltar".
Desperdiçadoras de sobras.
Elas valorizam o que consideram
"comida fresca", preparada diariamente. Reaproveitar alimentos não
faz parte dos seus hábitos.
Os dias em que mais jogam sobras fora são as quintas e sextas-feiras.
Isso porque os fins de semana são de reunião da família e a refeição tem de ser
farta e especialmente preparada.
"Comer o que sobrou de ontem é muito mesquinho. Prefiro
o arroz fresquinho", é o lema das desperdiçadoras de sobras.
Procrastinadoras.
As procrastinadoras guardam as sobras de
comida na geladeira.
O pesquisador da Embrapa constatou que elas fazem isso mesmo
sabendo que provavelmente o que sobrou não será consumido posteriormente.
Na sua geladeira há vários potinhos, panelas e recipientes
com restos. Mas eles acabam mesmo no lixo.
Estas mães têm um forte sentimento de culpa que as faz
pensar algo como: "Jogar comida fora em um mundo com tanta gente faminta é
pecado. Tenho que guardar o que sobrou".
Mães versáteis.
Elas fazem alimentos em menor quantidade e reinventam pratos a partir do que sobrou.Também planejam a compra dos alimentos.
Elas fazem alimentos em menor quantidade e reinventam pratos a partir do que sobrou.Também planejam a compra dos alimentos.
A quantidade de comida que vai ser preparada é
cuidadosamente calculada.
"O arroz que sobrou vai virar um ótimo risoto e as
sobras dos legumes podem se transformar numa fritada", costumam dizer as
mães desse grupo, que também se destacam pela criatividade.
Brasileiras x americanas
Ao comparar os grupos pesquisados no Brasil e nos Estados
Unidos, Porpino constatou que as brasileiras são majoritariamente desperdiçadoras
de sobras (42%), enquanto o perfil mais comum entre as americanas é o das
cozinheiras abundantes (30%).
Entre as brasileiras, o segundo perfil mais corriqueiro é o
das cozinheiras abundantes (21%).
As versáteis aparecem em terceiro lugar, com 17%, e as mães
carinhosas representam apenas 8%.
Ao analisar as americanas, Porpino verificou um empate, no
segundo lugar, entre as mães carinhosas (20%) e as procrastinadoras (20%).
No terceiro lugar, outro empate: versáteis e desperdiçadoras
de sobras, com 15%.
Dicas de especialistasO Centre of Excellence Against Hunger destaca que é possível
reduzir drasticamente o desperdício de alimentos em casa e, com isso,
economizar dinheiro do orçamento doméstico.
Daniel Balaban, diretor do centro, cita iniciativas como
maior planejamento das compras, elaboração de cardápios semanais e mudança no
padrão brasileiro de refeições com fartura excessiva.
"Planejar a compra faz toda a diferença. Fazer pequenas
compras é melhor para economizar e desperdiçar menos", diz Hélio Mattar,
do Instituto Akatu.
Porpino, por sua vez, lembra a importância de usar
recipientes herméticos para guardar as sobras de arroz e feijão."O que não for consumido nos próximos dois dias deve
ser congelado", aconselha. "Também é bom separar os alimentos a serem
reaproveitados em pequenas porções."
Ele sugere ainda que as sobras sejam "reinventadas em
novos pratos" em casas com mais moradores, para que a família "não
tenha preconceito em consumir a chamada comida 'dormida'".
Aplicativo contra o desperdício:
Para ajudar a combater o desperdício de comida, a Embrapa
lançou no Brasil o aplicativo Food Keeper com dicas para manter o frescor e a
qualidade dos alimentos.
A ideia foi de Porpino, que traduziu e adaptou para a
realidade brasileira o app criado originalmente pelo Departamento de Ciência
dos Alimentos da Universidade de Cornell e pelo Departamento de Agricultura dos
Estados Unidos (USDA).
Alimentos e bebidas aparecem distribuídos em 14 categorias:
aves, bebidas, carne, comida de bebê, condimentos e molhos, congelados,
delicatessen e comidas prontas, frutos do mar, grãos, feijões e massa,
industrializados de longa duração, laticínios e ovos, legumes e frutas, proteínas
vegetarianas, pães, tortas e bolos.
Sem verba da Embrapa para divulgar o aplicativo, Porpino diz
ter se surpreendido com a rápida popularização da iniciativa, que decolou com
ajuda das redes sociais: desde o início de 2017, o Food Keeper em português foi
baixado 131 mil vezes.
Postar um comentário